Entrevista com García Linera – Excelente análise!

Aqui republico uma excelente entrevista com Álvaro García Linera,
vice-presidente da Bolívia, realizada pelo Brasil de Fato.

Dignidade Indígena! - Foto de Tatiana ScarteziniLinera carrega em sua análise e discurso uma sobriedade admirável, sem com
isso perder a força e o vigor revolucionário de suas propostas. É certo que não
pactuo plenamente com sua metodologia de conquista das estruturas de Estado
para realizar as transformações a partir desta posição, o que não me
inviabiliza dedicar uma respeitosa atenção às suas propostas e avanços (claro
que não é só dele, mas no caso me refiro especificamente pelo contexto da
entrevista).

Em minha última ida à Bolívia, que ocorreu no início de 2009, quando se
realizava o plebiscito da Nova Constituição, senti de perto a força da
transformação cultural que aqueles povos andinos estão vivenciando. Entra em
cena, após séculos de um sádico e cruel colonialismo branco-europeu, a
dignidade enquanto prática política cotidiana e transformadora.

Diz-se que a Bolívia era um país que tinha vergonha de olhar no espelho,
pois sua base estrutural cultural era de origem branca aristocrática e a imensa
maioria da população de origem indígena. Nessa gritante contradição se
desenvolveu uma auto-repressão e a retração da auto-estima de povos que eram
nitidamente superiores numericamente mas que pela condição
sócio-política-cultural reproduziam e anseavam serem absorvidos por esta
cultura que no fundo os desprezava. O Quéchua e o Aymara, linguas
preponderantes do altiplano andino boliviano, eram proibidos dentro até dos
Micro-ônibus (muito comuns nas cidades bolivianas), mais por vergonha e estigma
que por decreto.

Desse ponto até uma situação em que uma criança de oito anos, de origem
indígena, diz que seu plano de vida é ser presidente do país como o também
indígena Evo Morales, é um salto quantitativo e qualitativo considerável.

Isso é só um exemplo de como o processo boliviano é complexo e de como a
transformação cultural e a reafirmação das identidades indígenas foram
essenciais dentro do que ocorreu e continua ocorrendo naquele país. Uma simples
conquista do poder do Estado sem estes processos no percurso representaria
apenas uma reedição do "mais-do-mesmo político revolucionário" que a
esquerda tradicional acabou presa voluntariamente.     

Em resumo, me limitando a eleger um processo Macro vinculado a bases
estruturais sólidas e que realmente apresente um caráter transformador, mesmo
vinculado a estruturas de poder estatal e algumas contradições profundas (mais
normal do que desejam os puristas), apresentaria o que ocorre na Bolívia como o
que se aproxima mais do que é anunciado como o socialismo do século XXI. 

Boa leitura e nenhum passo atrás!


 
"Precisamos de uma Internacional
de Movimentos Sociais"

Em entrevista ao jornal Brasil
de Fato
, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, cobra
mais iniciativa dos movimentos sociais latino-americanos, pede visão
“continentalizada” da esquerda no continente. "Antes, a esquerda
tinha um olhar sobre o continente em termos da conspiração revolucionária.
Nunca em termos de economia, de comércio, de criar um mercado comum,
uma defesa comum. É uma série de desafios sobre os quais ela nunca
tinha refletido, que tem a ver com o exercício de governo, com sua
maturidade de reflexão", diz Linera.

Elena Apilánez e Vinicius
Mansur – de La Paz, para o Brasil de Fato

 

Encontro na Bolívia

ÁLVARO GARCÍA LINERA não
é um vice qualquer. Além de acumular o posto de presidente do Congresso
boliviano, ele é um dos principais responsáveis pelas articulações
políticas do governo de Evo Morales e talvez o mais destacado teórico
do processo pelo qual passa a Bolívia atualmente. Sua larga bagagem
política e intelectual, além de o credenciar a receber títulos como
o “vice-presidente mais atuante do continente” ou o “intelectual
mais importante da América Latina na atualidade”, também o capacita
para dar largas e aprofundadas respostas, fazendo com que nossa entrevista
não chegasse nem à metade das perguntas preparadas. 
 
Em meio à atribulada agenda de um vice-presidente e candidato à reeleição
em campanha, Álvaro García concedeu ao Brasil
de Fato duas rápidas
horas de uma conversa pouco factual e mais analítica sobre o processo
político que vive a América Latina, em geral, e a Bolívia, em particular. 
 
Brasil de Fato – Um olhar sobre a história política latinoamericana
indica que, de certa forma, ela se move por ondas. O senhor acha que
essa ascensão recente de governos oriundos de organizações com trajetórias
de esquerda configura uma nova onda? 
 
Álvaro García Linera – Creio que este é um ciclo muito novo
e inovador sem comparação nos últimos 100 anos da história política
latino-americana. A única coisa comum no século 20 foram as ditaduras
militares. Fora disso, a esquerda teve presença descompassada na região.
Processo parecido foi a onda de luta armada, mas não era presença
vitoriosa de esquerda; era combativa, resistente, por parte da ala mais
radicalizada. A vitória em Cuba trouxe uma leva guerrilheira, que nos
anos de 1960 estava em todo o continente. Quando a esquerda armada triunfa
na Nicarágua, o continente já tinha outros ritmos, outras rotas. Então,
pela primeira vez em 100 anos há uma sintonia territorial da esquerda,
com governos progressistas e revolucionários. A direita já tinha essa
habilidade de “continentalizar” suas ações.  
 
Quais elementos dão unidade a essa sintonia? 
 
O que permitiu a leva de governos progressistas foi o ciclo neoliberal.
Ciclo que, mais ou menos, golpeou todos os países de maneira quase
simultânea em seus efeitos e defeitos. O atual processo é muito inovador
por seu caráter “continentalizado” de esquerda, pela busca de políticas
pós-neoliberais – umas mais radicais, outras menos –, por ser um
ascenso da esquerda através da via democrática-eleitoral, por ser
a primeira vez que ela projeta estratégias de caráter estrutural coordenadas
em nível continental. Antes, a esquerda tinha um olhar sobre o continente
em termos da conspiração revolucionária. Nunca em termos de economia,
de comércio, de criar um mercado comum, uma defesa comum. É uma série
de desafios sobre os quais ela nunca tinha refletido, que tem a ver
com o exercício de governo, com sua maturidade de reflexão. 
 
E também é inovador porque isso se faz sem um pensamento único de
esquerda. Não há um referente comum como a URSS, por sorte; não está
a China, melhor ainda. O processo de esquerda são muitas coisas agora.
Pode ser marxista ultrarradical, pode ser socialista, pode ser vinculado
ao pós-modernismo intelectual, pode ser mais nacionalista… e todos
são esquerda. Isso é muito rico, permite uma pluralidade de reflexões,
de discursos, de ideias. Não há o modelo a imitar ou uma “igreja”
que dita o bom comportamento, como ditava antes. É um momento de reconstrução
plural do pensamento de esquerda, ainda primitivo. Mas temos que ver
a história em processos que podem durar 50, 80 anos. Não nos desesperemos
por não ter as coisas consolidadas agora, por não termos com claridade
um grande programa de esquerda continental e mundial. Isso vai demorar
20 anos pelo menos, depois de várias derrotas, de várias vitórias
e outras derrotas. 
 
Este é um momento germinal e ainda há pedaços do continente que estão
em outro rumo. Isso é normal, inclusive, é possível prever a curto
prazo uma volta parcial do pensamento e dos governos de direita em alguns
países no continente e não vamos nos assustar. Lutemos contra isso,
mas este é um processo longo e lento, vai requerer ainda várias levas
de ascenso social e popular que permitam despertar toda a potência
desse momento histórico, que ainda não se fez visibilizar totalmente.
Ainda faltam novas ondas. Não esqueça que Marx usava o conceito de
revolução por ondas. Elas vão e voltam, logo vêm de novo e regressam
um pouco. A onda atual é das primeiras, logo haverá um pequeno refluxo
à espera de uma nova onda que permitirá, a depender dos homens e mulheres
de carne e osso, expandi-la a outros territórios e aprofundar as mudanças
que até agora são superficiais, parcialmente estruturais. 
 
Esse processo coloca a superação do capitalismo em jogo? 
 
Marx dizia que o comunismo é o movimento real, que se desenvolve diante
de nossos olhos e que supera a ordem existente. Não é uma questão
de teoria, de discurso, é questão de realidade. E está claro que
a primeira meta pautada pelas forças populares diversas do continente
foi, em primeiro lugar, frear o esvaziamento social, democrático e
material que caracterizou o processo neoliberal. Esvaziamento material
a partir da exteriorização dos excedentes, esvaziamento social com
a retirada dos direitos conquistados nos últimos 100 anos e esvaziamento
democrático mediante a aterrizagem da doutrina única, liberal e individualista. 
 
O segundo momento é de reconstituir e ampliar direitos da sociedade,
assumir controles do excedente econômico, expandir a geração da riqueza
com sua distribuição. Essas demandas sociais surgem a partir de 1995
e são de caráter democrático-social, no sentido marxista do termo.
Ainda não foram atendidas plenamente, como no tema da terra; entretanto,
elas já abriram espaço para demandas mais radicais, mais comunistas,
que ainda são incipientes, parciais e fragmentadas. Veja a experiência
argentina com a tomada de fábricas, as experiências no Brasil, na
Venezuela, as empresas sociais na Bolívia, criadas no nosso governo, reivindicadas pelo povo, ou a potencialização dada às estruturas
comunitárias, para buscar um desenvolvimento diferente à economia
de escala, com tecnologias alternativas, articulações de produção.
Todas elas avançam, têm a experiência de gestão e regridem. Aqui
na Bolívia, com a questão da água: existia uma experiência falida
[privatização da água em Cochabamba], defende-se a socialização
do controle da água, implanta-se outra gestão e, em seguida, ela retrocede. 
 
Ou seja, essas potencialidades comunistas da sociedade – porque não
há comunismo que não venha da sociedade, não há comunismo de decreto,
não há socialismo de Estado, isso é sem sentido – têm ainda uma
força muito dispersa, uma presença embrionária, não conseguem coagular,
mas estão latentes. Seguindo essa leitura, hoje, em 2009, não estamos
diante de uma perspectiva de superação do capitalismo. Dizer outra
coisa seria nos enganarmos. Mas emergiram ações da sociedade que apontam
para o socialismo, construído pelas próprias classes trabalhadoras.
Existem sinais, sementes, aflorações, mas ainda não constituem a
razão dominante da sociedade. 
 
E quanto isso amadurecerá? 
 
Em dez, 20 anos? Não se pode definir. O que pode fazer o revolucionário
é, a cada sinal de socialismo – como a reapropriação, por parte
dos produtores, de sua própria produção com democratização e socialização
da tomada de decisões –, reforçá-lo para que se expanda. O dever
do comunista é meter-se de cabeça a cada abertura, não inventar o
comunismo. O comunismo é a capacidade real do povo de produzir e se
associar. Eu tenho a leitura de Marx, ao avaliar a Segunda Revolução
Industrial, em 1850, que dizia que serão necessárias dezenas, milhares
de lutas, de fracassos, de pequenas vitórias, depois novamente fracassos,
para que, da própria experiência da classe trabalhadora, surja a necessidade
de associar-se para tomar o controle da produção. E isso é uma visão
muito, mas muito otimista do ciclo que está emergindo. 

 
Que importância tem a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas)
e a Unasul (União das Nações Sulamericanas) neste cenário latino-americano,
e como o senhor vê os movimentos sociais nesse processo de integração? 

 
A Unasul é um projeto continental, fruto da surpreendente simultaneidade
de governos progressistas em boa parte do continente. Além da luta,
estamos discutindo em termos de estrutura, de matéria, de economia,
de sociedade, de cultura, de legislação… um grande salto. A esquerda
não refletia sobre isso antes e isso é mudar nosso “chip”. Ainda
não se escreveu sobre esse tema que, inevitavelmente, tem que entrar
no discurso de esquerda. Ele segue sendo assunto dos funcionários das
chancelarias tradicionais, mas não é uma construção desses dinossauros.
É uma construção de governantes progressistas que não tem o acompanhamento
do intelecto social progressista, que está aí atônito, vendo, pasmo,
esse novo ciclo. 
 
Tal projeto de integração tem que tomar em conta a unanimidade dos
critérios de cada país, sendo um processo lento, estrutural. A perspectiva
é boa, mas a velocidade é lenta, como tem que ser um bom processo de integração, não há que se desesperar. A União Europeia está
aí há pelo menos 30 anos e ainda está se construindo. Construir Estados-continente
é complexíssimo, mas este é o rumo do mundo no século 21, isso é
o que vai contar no movimento de tomada de decisões econômicas. 
 
E a Alba? 
 
É diferente, porque é uma iniciativa de governos progressistas muito
mais afins, o que permite maior velocidade em relação à Unasul. Tanto
Mercosul como Alba deveriam dissolver-se no interior da Unasul, mas
isso vai demorar décadas. Alba e Mercosul são estruturas de ação
imediata. Vão assumir um conjunto de tarefas mais rapidamente e mais
efetivamente. A Alba está articulando várias coisas ligadas à economia,
usando regras que, pela afinidade política, não podem ser tomadas
em outro cenário, levando adiante articulações e arranjos econômicos
não baseados historicamente em relações de mercado. Ainda muito incipiente,
mas, no caso de Bolívia e Venezuela, há um conjunto de atividades
econômicas que já não
estão necessariamente reguladas pelo mercado. Têm como parâmetro
máximo o mercado, mas tentam construir intercâmbios comerciais a partir
de outros critérios. São esforços audazes de complementaridade,
como acontecem com os setores têxteis, do petróleo e da soja. A Venezuela
tem relações parecidas com Cuba e Nicarágua. 
 
Não é retórica falar de processos crescentes de busca de outros mecanismos
de integração não baseados em regulações de mercado. O recente
passo do Sucre [sistema monetário comum da Alba], como um mecanismo
de pagamentos entre os países, pode ser um novo piso nessa construção
de algo muito novo, que não há em nenhuma outra parte do mundo. Outro
passo são as empresas gran-nacionais, pertencentes aos estados, que
darão um olhar de gestão da economia de maneira regionalizada e unicamente
organizada entre os países. Creio que a Bolívia vai dar esse primeiro
passo da empresa gran-nacional com a Venezuela em um prazo muito curto.
As condições materiais estão dadas. 
 
E qual papel jogam os movimentos sociais nesse processo de integração? 
 
Creio que a articulação deles em nível continental e sua participação
nesses processos de integração é ainda muito incipiente. O neoliberalismo
fragmentou tudo e reduziu as articulações a uma união via ONGs. Não
era uma articulação autônoma. Hoje começa haver um encontro cara-acara
de companheiros que se convidam, mas ainda avançaram pouco. Temos que
ir além dos fóruns, que foram importantes nos anos de 1990 para juntar 1990, rompendo as suscetibilidades de direções e de hegemonias,
mas muito débeis, frouxos em seus discursos. A tomada de ações vinculantes
não foi feita por nenhum dos fóruns. As pessoas retornavam para suas
casas para arrumar seus papéis e convocar outro fórum. Necessitamos
de uma estrutura bolchevique, que o MST tem, do movimento social. Isso
tem que vir deles, não dos governos. Ainda não se criou uma plataforma
continental dos movimentos sociais. Sei que isso é complexíssimo.
Digamos que nem no nível de países isso se dá, porque acontece em
momentos espetaculares. A pauta de nacionalizações, por exemplo, dá
lugar a revoluções. Mas precisamos desse esforço de nos olharmos
como continente, não somente acompanharmos as ações dos presidentes.
Quando há reunião da Alba, os movimentos sociais se reúnem e debatem
temas complementares aos dos presidentes, melhor ainda quando os temas
debatidos entre presidentes foram previamente discutidos com lideranças.
Mas é necessário ir além. 
 
É dificílimo, mas talvez seja hora de projetar uma Internacional continental
de movimentos sociais, uma estrutura como uma Internacional comunista,
mas de movimentos sociais, continental, e depois pensar em ir para o
mundo. Diante da possibilidade de que em algum país de nosso continente
a direita retome o governo, como eles não vão pautar uma mobilização?
Ao fim e ao cabo, se essa leva progressista for para trás, quem mais
sofrerá serão os movimentos. Eles estão obrigados a pensar continentalmente
e devem defender e empurrar mais para lá esses processos. O século
21 exige novos compromissos, maiores ações, e a melhor experiência
a ser resgatada está nas reflexões de Marx sobre a Primeira Internacional,
na qual se juntaram partidos, sindicatos, agremiações, marxistas,
anarquistas, socialistas… articulavam-se continentalmente com debilidade,
mas com firmeza e vinculação de suas decisões. É melhor do que a
Internacional leninista, e talvez a melhor referência para uma Internacional
hoje não seja bolchevique, mas a comunista de Marx em seu debate fascinante
com Bakunin [Mikhail Bakunin, um dos intelectuais fundadores do anarquismo].
Como se tomam as decisões? É pela autoridade moral das organizações,
dizia. Não se obriga a ninguém, mas todos estão comprometidos a cumprir
o que decidiram. Precisamos de um novo passo já nesta década: uma
internacional de movimentos sociais com maior capacidade de vinculação
em suas decisões, de mobilização desde os países e com uma agenda
comum debatida continentalmente por eles para defender esse processo, 
para controlá-lo e radicalizá-lo. 
 
Seria necessário um ponta de lança para isso? 
 
Modéstia à parte, creio que a Bolívia é a experiência mais avançada
de movimentos sociais. 
 
Mais do que o Brasil? 
 
Sim. É um país menor, evidentemente, com menos gente. Mas a eficácia
político-estatal do movimento é a mais radical no continente. 
 
Esta é a originalidade do processo boliviano? 
 
Acho que sim. Tudo isso aqui é movimento social.  
 
No Estado? 
 
No Estado, por fora do Estado, por baixo do Estado, por cima do Estado.
Esta é uma grande discussão, temos que fazê-la. Nos causou muito
dano o debate de John Holloway [do livro Mudar o mundo sem tomar
o poder] e Marcos del Rojo, não? Respeito os companheiros, mas
tenho profundas discordâncias. Tem que haver uma aliança de movimentos
sociais continentais fortes, que sejam os articuladores. Tem que haver
uns quatro, cinco ou seis que se lancem, de maneira muito respeitosa,
com democracia de base, e que articulem o debate com os demais, mas
alguém tem que dar o primeiro passo, e logo. 
 
Este seria o sujeito revolucionário na América Latina? 
 
García Linera - Imagem do Brasil de FatoO sujeito revolucionário é o que faz a revolução. Não há uma predestinação
para definir quem será, este foi o grande erro do debate ocioso da
esquerda, desde antes dos anos de 1950. Diziam “este é o que vai
fazer a revolução” e seguiam esperando que o sujeito se movesse,
mas ele estava em outra. Paranoico, não? O que está claro é que o
sujeito revolucionário vem do mundo do trabalho sob a forma de camponês,
de comunário, de indígena, de operário, de jovem, de intelectual,
de integrante de associações de bairros. Isso não contradiz as reflexões
de Marx, segue sendo o mundo do trabalho, que se complexificou infinitamente
frente ao que ele conheceu. 
 
Dependendo de qual desses espaços do mundo do trabalho assume maior
protagonismo, o processo tenderá a visualizar um aspecto em detrimento
de outros. Se é o mundo indígena e camponês, se visibilizará o tema
da terra, da biodiversidade, e não o salarial. Em seu momento voltará
a emergir o mundo do trabalho sob sua forma salarial, daqui a alguns
anos, porque estamos em um processo de reconstrução do mundo salarial
no continente e sua formação e estabilização vai requerer décadas.
Ou se é mais do tipo de bairro, se visualizará o tema de necessidades
básicas… mas são trabalhadores; como aconteceu em Cochabamba: quem
fez a Guerra da Água eram trabalhadores, mas não se moviam como sindicato
de trabalhadores, se moviam como moradores. Mover-se como trabalhador
implicava ser demitido da fábrica. Canalizaram sua expectativa de outra forma.  
 
Não há que esperar que o operário da fábrica se una em sindicato
para falar do protagonismo do mundo laboral. Ele se move de múltiplas
formas, veja os sem-terra. No caso do Brasil, está claro que, na medida
em que há uma recomposição da produção – o Brasil, agora, como
México, Filipinas, Coreia e outros seis ou sete lugares, é a oficina
de produção do mundo –, não haverá eficácia político-estatal
do movimento social sem protagonismo forte desse mundo assalariado.
Existe o Movimento Sem Terra, com linhas revolucionárias muito fortes
– o que é excelente –, que assume a aposta de manter a presença
da sociedade na construção de alternativas. Mas pensar um projeto
de radicalização aí é também pensar em seu mundo trabalhador. Se
o movimento operário não acompanhar o MST, daqui a uma década o que
ele vai poder fazer, frente à necessidade que requer semelhante potência
mundial, será pouco. 
 
E no caso da Bolívia? 
 
Aqui, esse mundo do trabalho tem como liderança o movimento camponês-indígena,
ainda que o país tenha tido alguns processos de assalariamento muito
interessantes. São trabalhadores, criadores de riquezas, que têm estruturas
locais associativas, formas de gestão comum da terra, trabalho individualizado,
vínculos parciais com o mercado, vínculos não de mercado; e têm
o protagonismo. Mas, aí no meio, estão também outros mundos laborais,
assalariados, não-assalariados, que se mobilizam, mas com menor intensidade
e maior dificuldade. Porém, se não conseguir avançar mais, será
porque o movimento operário ainda não conseguiu mobilizar-se. Se esse
mar de operários, daqui a cinco, dez ou 20 anos, não conseguir se
unificar com identidade e ação coletiva, o movimento atual encontrará
um limite. A chave serão esses dois braços, até que se reorganize
o movimento da classe trabalhadora, que se rearticule diante da recomposição
territorial da força de trabalho planetária. 
 
Porém, muito se fala sobre não ser possível entender o processo
boliviano com um olhar tradicional de esquerda, com uma formação ocidental.
Quais seriam essas limitações? 

 
Não devem se meter com assessores ou algumas ONGs que os assessoram,
aí está esse tipo de discurso que tem a ver com uma espécie de moda.
Na central de trabalhadores camponeses, nas comunidades ou no movimento
indígena em seus níveis intermediários e de base, não há esse debate
falso. Muitos dos que seguem essa linha ajudam muito com seu trabalho,
mas são parte de uma espécie de ressaca. Antes estavam envolvidos
com uma esquerda tradicional e aderiram recentemente ao mundo indígena,
o que os levou a radicalizar seus pontos de vista ostentosamente. 
 
Entende-se esse tipo de reação na medida em que, durante muito tempo,
a esquerda tradicional aqui desdenhou o movimento indígena, os acusou
de querer voltar a tempos arcaicos ou chamou-os de pequenos burgueses, resposta clássica dessa esquerda. Então, uma inteligência
indígena se formou nos anos de 1970, 1980 e 1990, como a figura de
Fausto Reinaga, em rechaço a essa leitura bem primitiva. Essa inteligência
se formou em batalhas contra a direita e também contra a esquerda,
que repetia processos de discriminação, que dizia que a revolução
era dos operários. Os camponeses eram a massa de apoio que levaria
os operários nos ombros. Em cima deles, iriam os intelectuais, não
era assim? Então, parte de uns convertidos recentes segue pensando
nisso. 
 
Agora, no governo, nos debates da federação de camponeses ou na dos
cocaleiros, há um processo rico dessa vertente camponesa-agrária-indígena
com um novo marxismo. Nós lutamos por isso por mais de 20 anos. Eu
briguei com todos os esquerdistas. Os primeiros textos que escrevi há
30 anos foram para brigar com trotskistas, stalinistas, maoístas, e
todos me qualificaram de revisionista, de ignorante. Buscávamos um
encontro entre marxismo e indianismo e acho que foi frutífero. Reivindico
minha vertente marxista, às vezes me reivindico indianista, ainda que
não seja indígena, e daí? 
 
Como se encontraram essas vertentes? 
 
O indianismo teve a grande virtude de denunciar a colonialidade do Estado
– e não poderia vir de outros que não eles –, mas era impotente
na questão do poder. Diziam “todos eram índios” e temos “que
indianizar o Estado”. Muito bem, e como se faria isso? O seu discurso
era denunciativo, mobilizador, mas somente isso. A vertente marxista
pautava o tema do poder, mas com suas incompreensões o fazia à margem
do movimento indígena, portanto, era um tema de elites. Assim, era
impossível definir uma estratégia discursiva e de alianças que permitisse
o acesso ao poder. Mas, no fim do século 20, indianismo e marxismo
se fundem. 
 
Essa é a originalidade do processo boliviano? 
 
Em termos de discurso e de criação teórica-intelectual, sim. Isso
permitiu criar um cenário de estratégia. Em termos de ação política,
é a grande mobilização de massas: sublevações, bloqueios, marchas,
levantamentos, insurreições. 
 
E esse discurso é muito distante do discurso que há
hoje? 

 
Não, de jeito nenhum. Vou contar o que aconteceu com o Evo quando iniciamos
o programa Juancito Pinto [que dá bolsa aos estudantes do ensino fundamental],
em 2006. Fomos entregá-lo no norte de Potosí [departamento no oeste
boliviano]. Um jovem do campo se aproximou e perguntamos: “Como está?
Em que série está?”. “Estou no terceiro básico, tenho oito anos”,
disse. “E o que você fez com o seu bônus?”, perguntamos. “Estou
guardando para me preparar para ser presidente como você”. Ah, por
favor… É a melhor resposta que poderia dar. Quando um indígena coloca
como possibilidade de vida ser governante, o tema do poder se converte
em um feito próprio, porque era uma questão de submissão! O poder
era de poucos brancos e formados, e agora um camponês do norte de Potosí,
a zona mais pobre do país, dizia “eu também posso ser presidente”.
Temos aí uma revolução cultural. 
 
Há um simbolismo forte aí, mas até
que ponto as bases realmente estão discutindo as transformações políticas?
Qual é a proximidade das bases e da intelectualidade? 

 
São espaços diferentes. Há o mundo da academia, que recebe para pensar
24 horas, e o mundo da vida laboral, associativa, sindical, do movimento
camponês. Espaços diferentes que possuem canais de comunicação e
distintas linguagens. No tema das alianças: a academia pode falar de
bloco de poder, pode usar Gramsci, enquanto do outro lado a discussão
é apoiar ou não os moradores desse bairro, se apoiamos ou não alguma
candidatura. É o mesmo tema verbalizado de distintas maneiras. As mesmas
preocupações da base são levadas para a academia e, na academia,
de tudo que se reflete, poucas coisas são debate nas bases.  
 
Mas existem momentos em que eles se aproximam mais, criando um espaço
de intervenção maior; e aí são os grandes ascensos. Quando a reflexão
dessa intelectualidade progressista é o debate das assembleias. Quando
o que surge em um jornal, em algum panfleto, em algum discurso rapidamente
é retomado pelos níveis dirigentes e levado à base. Esta é a dinâmica.
É impossível isso ser permanente, porque são espaços diferentes
no tempo e na forma de vida. Creio que em nenhuma parte isso se deu.
A imagem que temos dos sovietes e do Partido Bolchevique está um pouco
idealizada. O fato de que nas fábricas os operários liam Lênin não
é verdade. 
 
Pensar essa fusão do espaço intelectual com o movimento social é
impossível. Existem aí vasos comunicantes fluidos que levaram, inclusive,
o âmbito intelectual a mudar em dez anos. O que debatiam os intelectuais
antes? Governabilidade e coisas assim. Hoje debatem na universidade
pública, e até nas privadas, a nova Constituição. Mesmo os setores
conservadores têm que refletir sobre os fatos, têm que saber como
o Direito Penal vai estar vinculado com a Nova Constituição. Hoje
existem vasos comunicantes. Em certos momentos são rios comunicantes,
ou fusões parciais, e logo separações, como em qualquer processo
de transformação; outra vez por ondas. Nada é definitivo, perpétuo
ou já dado. A ideia de revolução permanente não é tão certa. Estes
oito anos intensos na Bolívia demonstram essa dinâmica de ondas que
falava Marx, mais do que o linear que nos dizia Trotski. 
 
Quem é…
 
Nascido em Cochabamba, em 1962,
Álvaro García Linera é formado em Matemática na Universidad Nacional
Autónoma de México (UNAM) e sociólogo autodidata. Ao regressar de
seus estudos, começa sua militância na Bolívia, vinculado
às Células Mineiras de Base, grupo que se funde aos Ayllus Rojos nas
atividades de propaganda e organização de comunidades do altiplano.
Posteriormente, ingressa no Exército Guerrilheiro Túpac Katari (EGTK)
– uma das poucas forças guerrilheiras propriamente indígenas da
América Latina –, onde é destacado para atuar com formação política
e pesquisa de comunidades indígenas. Em 1992,
é preso, acusado de sublevação e levantamento armado, ficando encarcerado
por cinco anos, tempo em que escreve uma de suas principais obras, o
livro Forma valor e forma comunidade. Ao ser libertado,
é convidado para ser professor do curso de Sociologia da Universidad
Mayor de San Andrés (UMSA), a universidade pública de La Paz. Em 2006,
assume a vice-presidência, ao lado do presidente Evo Morales, pelo
Movimento ao Socialismo (MAS)